*Do portal G1
Há dez anos, em 10 de agosto de 2007, uma reportagem do jornal “Bom Dia Brasil” mostrou que o boom da construção civil fazia com que a demanda por engenheiros fosse tão grande que as empresas estavam “importando, treinando e brigando para não perder o profissional”. Hoje em dia, depois da Copa do Mundo de 2014, da Olimpíada de 2016 e da crise econômica e política, a situação da carreira de engenharia civil é outra: só entre janeiro de 2014 e abril de 2017, a demissão de engenheiros de todas as áreas no Brasil ultrapassou em mais de 48 mil a admissão deles em novos empregos, segundo dados da Federação Nacional de Engenheiros (FNE) obtidos pelo G1.
A carreira, porém, segue sendo uma das mais procuradas pelos vestibulandos. De todas as modalidades da engenharia, a civil é que teve mais inscritos na edição de 2016 do Sistema de Seleção Unificada (Sisu), e é a oitava entre todas as carreiras com o maior número de candidatos. Ela também é a modalidade com mais profissionais ativos na área: dos mais de 1,5 milhão de profissionais cadastrados no Conselho Federal de Engenharia e Agronomia (Confea), 273 mil têm o título de engenheiros civis.
Mas nem tudo é incerteza para o futuro dos estudantes de engenharia civil. Segundo professores e profissionais da área, mesmo com o mercado desaquecido e com a desconfiança da população sobre a corrupção em grandes obras de infraestrutura, sempre haverá vagas para bons profissionais, porque sempre haverá problemas que exigirão a ajuda da engenharia.
As principais dúvidas sobre a carreira:
- Engenheiros sempre ganham bem?
- Precisa ser muito bom em matemática e em física?
- Tem muito mercado para o engenheiro civil?
- As mulheres têm espaço ou o mercado é dominado por homens?
- O salário é alto até para os estagiários?
Veja quem são os especialistas e estudantes que ajudaram a esclarecer as dúvidas dos vestibulandos:
- Kurt André Pereira Amann, coordenador do curso de engenharia civil da FEI, de São Paulo
- Silvia Santos, professora doutora do curso de engenharia civil da Univali, de Santa Catarina
- Murilo Pinheiro, presidente da Federação Nacional de Engenheiros (FNE)
Engenheiros sempre ganham bem?
Em comparação com outras profissões, a da engenharia pode aparentar salários bons, explicam os especialistas. Segundo Silvia Santos, que dá aulas no curso de engenharia civil da Univali, em Balneário Camboriú (SC), o principal motivo por trás disso é uma lei federal que garante o pagamento de um piso salarial para os engenheiros.
A lei, que está em vigor desde 1966, também vale para outras profissões, como arquitetos, agrônomos, veterinários e químicos, e estabelece que um profissional formado nessas áreas deve receber, pelo menos, seis salários mínimos por seis horas diárias de serviço. Caso o contrato ultrapasse as seis horas, existe o acréscimo de um e meio salário mínimo a cada hora adicional.
“Eu não posso dizer que recebi salários ruins, mas talvez isso seja pelo fato de que a legislação determina piso profissional”, explicou ela ao G1.
Kurt André Pereira Amann, coordenador do curso de engenharia civil da FEI, em São Paulo, acrescenta que o salário também vai depender da qualificação de cada engenheiro.
“Se o engenheiro civil é de baixa qualificação, tem o básico do básico, só o diploma, e não investiu na carreira, especialização ou a experiência, não é sempre assim”. (Kurt André Pereira Amann, coordenador do curso de Engenharia Civil, da FEI).
Os dois professores concordam que o mercado também afeta diretamente a remuneração. “Se a gente tem o mercado aquecido como alguns anos atrás, a gente até poderia dizer que é verdade”, ressalta Kurt. Silvia lembra que, em tempos de crise, o importante é manter o emprego e, por isso, pode ser tornar mais comum que empregadores e empregados façam acordos para reduzir a carga horária de trabalho, com a remuneração condizente.
Ela diz ainda que, assim como em outras áreas, o mercado de trabalho do engenheiro civil também viu crescer o efeito de “pejotização”. “O que a gente tem visto é que as empresas estão contratando menos profissionais pelo regime CLT e mais na condição de pessoa jurídica”, disse ela.
Precisa ser muito bom em matemática e em física?
Ser “muito bom” nas duas disciplinas não é necessariamente obrigatório, mas qualquer estudante de engenharia civil vai ter muitas aulas e precisar fazer muitos e muitos exercícios de matemática, física e química. Os professores ouvidos pelo G1 afirmam que a base da profissão está nos cálculos, e os vestibulandos devem estar prontos para passar por matérias como cálculo (diferencial, integral, vetorial), geometria analítica, álgebra linear, química geral, termodinâmica, eletricidade e estatística, entre outras.
Segundo o professor Kurt Pereira, esses conceitos formam a base dos conhecimentos de estruturas como a hidráulica, ou a mecânica de solo, que são importantes no trabalho do engenheiro.
“A maior dificuldade, principalmente na matemática, é fazer com que o estudante consiga entender a abstração”, diz ele. “Tem que ter um bocado de imaginação para conseguir pensar e converter esse pensamento para física e conseguir solucionar o problema. Conseguir imaginar vetores, pensar nas forças que estão atuando na estrutura, exige você imaginar e conseguir transportar conceitos.”
Ele ressalta que estudos tanto dentro do Brasil quanto em outros países apontam essa dificuldade como um dos diversos fatores que podem provocar a evasão nos cursos de engenharia.
Mas calma: apesar de difícil, não é impossível superar esse desafio, dizem os especialistas. Silvia confessa que nunca gostou muito de física e matemática, mas se dedicou aos estudos e nunca reprovou uma disciplina na área.
“O menino que entra na universidade não vai entrar calculando uma ponte, mas vai aprendendo derivada (taxa de variação usada no cálculo), de repente se vê no final do curso calculando uma ponte com o todo o conhecimento que ele foi tendo ao longo do curso. A construção do saber se dá degrau a degrau, semestre a semestre, disciplina a disciplina.” (Sílvia Santos, professora de Engenharia Civil, da Univali.
Tem muito mercado para o engenheiro civil?
Assim como na questão dos salários, a resposta dos professores é “depende”. Dados da Federação Nacional dos Engenheiros (FNE) corroboram a impressão. Em um levantamento feito a pedido da FNE pelo Dieese, com dados do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged) do Ministério do Trabalho, é possível ver que, desde 2013, a diferença entre engenheiros admitidos em um emprego e engenheiros demitidos sofreu uma reversão: em 2014, 2015 e 2016, o número de engenheiros demitidos foi mais alto.
Murilo Pinheiro, presidente da FNE, afirma que os dados, apesar de preocupantes, não são exclusivos da área da engenharia, mas que, ao contrário de outras profissões que passam por crises e falta de vagas, a demanda por engenheiros e profissionais de área tecnológica sempre vai existir. E, de acordo com ele, o Brasil ainda não está formando um número suficientes de pessoas qualificadas na área.
“A gente deveria estar formando o dobro de profissionais na área tecnológica. A engenharia está presente em tudo o que fazemos, então a oportunidade ao profissional da área tecnológica é muito grande”. (Murilo Pinheiro, presidente da FNE).
Em 2010, Silvia Santos, professora da Univali, publicou um artigo justamente sobre a grande demanda por engenheiros, também tem uma visão otimista para o futuro, considerando os ciclos da economia.
“Naquela época os alunos estavam entrando na universidade dentro de um cenário político muito favorável a eles. Tinha o PAC I, PAC II, obras da Copa, da Olimpíada etc. E esses meninos, que formaram em 2016 e agora, eles agora não têm emprego. Por outro lado, os meninos que estão entrando agora, no meu entendimento, estão se preparando no melhor momento, porque acredito que essa crise vai passar e, quando eles estiverem se formando, vai ter emprego para eles e para esses de agora.”
Já Kurt Pereira, da FEI, afirma que o setor oferece diversos ramos e nichos nos quais os engenheiros podem buscar trabalho quando o mercado imobiliário e das grandes obras não estiverem aquecidos.
“Se olhar com essa cara em geral, de fato as coisas não estão tão fáceis. Porém, o mercado tem diversos nichos a serem atendidos, ele pode buscar outros nichos. Um engenheiro de alta competência em grandes obras talvez não se sinta à vontade para lidar com obra pequena, mas esse mercado existe.”
As mulheres têm espaço no mercado?
Dados do Conselho Nacional de Engenheiros e Agrônomos (Confea) mostrou que a mulher tem conquistado cada vez mais espaço na engenharia civil. Porém, ainda há um longo caminho até a igualdade entre gêneros. Atualmente, dos 273.491 profissionais de engenharia civis ativos no Confea, 53.960 são mulheres. Isso equivale a 19,7% do total:
Silvia Santos, da Univali, se formou na graduação em engenharia civil em 1994 e conta que a academia e o mercado aceitam a presença das mulheres hoje em dia mais do que no passdo. Ela afirma que “naquela época acontecia de professores usarem expressões inadequadas e diminuírem a capacidade intelectual das mulheres”, mas ela diz que as estudantes mulheres usavam a discriminação como motivador para se dedicar ainda mais. Mesmo assim, ela relatou um caso em que justamente o seu desempenho superior aos colegas homens acabou sendo alvo de discriminação de gênero por parte de um professor:
“Ele chamou a mim e minha amiga e falou para os outros alunos: ‘Essas meninas, quando vão cozinhar em casa, calculam o volume do trigo para usar na massa com [cálculo] integral, e vocês não sabem calcular integral na prova.’ Então a gente respondia: ‘Ah, é assim? Então espera pra ver’. A gente reclamava menos e agia mais.”
Ao contrário das estimativas das duas sobre Univali e a Anhembi Morumbi, nos cursos de engenharia civil da Universidade de São Paulo (USP), a proporção de mulheres continua baixa, e segue a média nacional de profissionais.
De acordo com dados da Fuvest 2016, do total de novos calouros matriculados na USP inteira, 42,3% eram mulheres. Já na Escola Politécnica, em São Paulo, o número de calouras da engenharia civil representou 18,1% do total. No curso de engenharia civil do campus de São Carlos, das 60 vagas oferecidas em 2016, só 12 (ou 20%) foram ocupadas por mulheres.
O salário é alto até para os estagiários?
Os estágios em engenharia são, segundo os professores, divididos em duas categorias: obrigatórios e não obrigatórios. No caso dos obrigatórios, que cada estudante deve cumprir por pelo menos 150 horas, as empresas não são obrigadas a pagar os estagiários. Mas, até alguns anos, o mais comum era que inclusive esses estágios fossem pagos com salário e os mesmos benefícios que os não obrigatórios.
“Há dois anos, todas as empresas que contratavam alunos independente da modalidade de estágio remuneravam os alunos, mesmo os alunos do estágio obrigatório recebiam todos os benefícios. Com a instalação da crise de forma mais presente, as empresas estão aplicando a lei, ou seja, o estágio obrigatório não mais tem sido remunerado em sua plenitude”, explica Silvia Santos.
“Mas, se você considerar o salário mínimo de dois anos atrás, eu já tive aluno recebendo R$ 1.500 por quatro horas de trabalho. Em Balneário Camboriú, que é a segunda mais verticalizada do país, com técnicas construtivas semelhantes a Dubai.”
Kurt Pereira, da FEI, também afirma que o mercado para os estagiários não está tão bom quanto alguns anos atrás. “Antes de disparar essa crise aí, as empresas procuravam muito os estudantes e o salário de fato estava bom. Agora, não que tenha retrocedido, mas o valor estabilizou em um patamar determinado, porém os empregos diminuíram.”